sábado, 24 de outubro de 2009

PORNOCHANCHADA
Por Marcel de Almeida Freitas
Introdução
A memória nacional que, nos âmbitos político, econômico ou social, é tão precariamente conservada, nos ramos artístico e cultural pode encontrar no cinema alguma possibilidade de recuperação. A pesquisa histórica em geral enfrenta o problema da falta de documentação, mas não só este: também os juízos de valores dos estudiosos, intelectuais e dos profissionais da mídia contribuem para que alguns 'acontecimentos' artístico-culturais permaneçam por 'baixo do tapete'. Entretanto, a neutralidade deve ser procurada ao máximo (mesmo sabendo que a neutralidade absoluta em qualquer campo de conhecimento é impossível), o que poderia propiciar que a História se voltasse para a criação artística em geral não somente como o entretenimento que fundamentalmente é, mas como mecanismo de resgate do passado, trazendo à luz elementos auxiliares à compreensão da vida brasileira. Desta forma, através da preservação da produção artística brasileira temos mais meios de, compreendendo as épocas anteriores, entender todo o processo que culminou nas produções artísticas e culturais do presente. A imagem, nesta busca, tem a possibilidade de se tornar documento de determinado período histórico e objeto de estudo deste período e, assim sendo, o cinema pode ser usado para que possamos contextualizar determinada etapa da história nacional, esclarecendo a respeito dos modos de pensar, amar, sofrer, trabalhar, vestir, enfim dos modos de vida daquela época. Desta maneira, o processo dinâmico de conhecimento através da imagem (como também do som) pode servir como mais um, entre tantos, materiais da pesquisa sócio-historiográfica. Logo, o argumento deste artigo é que não somente as produções cinematográficas didáticas e prestigiadas podem contribuir para se pensar e localizar o passado do Brasil, mas também aquelas produções estigmatizadas pela elite intelectual e midiática. Isto porque, independentemente do 'nível' da produção ou da qualidade geral, os filmes feitos em série, com baixo orçamento e com atores/atrizes quase amadores e que receberam o rótulo de 'pornochanchadas' podem ser tão esclarecedores quanto as obras "Anchieta José do Brasil", "Gaijin" ou "Anos JK". Não se discute aqui a qualidade ou a moralidade desta ou daquela produção: se eram mal-acabados, alienados/alienantes, infames ou escatológicos. Isso cabe a profissionais da área de Comunicação e/ou Belas-Artes avaliar (o que é diferente de julgar). Este texto é uma visão sócio-histórica daquelas produções que dominaram as salas de cinema nacional especialmente na década de 1970 e na primeira metade da década de 1980. Até mesmo o machismo, o racismo e outros 'ismos' de que são acusadas tais fitas (geralmente com razão) são indícios históricos para se refletir a mentalidade coletiva da época. O cinema da Boca-do-Lixo é geralmente tratado com ironia nas raras menções da cinematografia brasileira, apesar de sua importância no mercado dos anos 1970 e início da década de 80. Daí, o cuidado do professor e cineasta Nuno ABREU (2000) em se despir de preconceitos e lançar 'um olhar benevolente' sobre aquela comunidade peculiar de diretores, produtores, atores e técnicos que agitou a zona do baixo meretrício em São Paulo. Sua pesquisa tem como matéria-prima entrevistas com quinze personagens da época (incluindo uma atriz, Matilde Mastrangi). Por conseguinte, a partir deste e de outros trabalhos, será exposto neste texto alguns aportes sócio-psíquico-culturais deste fenômeno tão complexo denominado Pornochanchada, herdeira, em certo sentido, das chanchadas da Atlântida. A chanchada foi um estilo bem comum no cinema brasileiro, tendo sido a mescla de vários estilos de comédia com um toque de picardia, ingênua para os padrões de hoje. Desde a Grécia Clássica, onde Aristóteles já a abordara em sua "Poética", a comédia tem adquirido variados sub-gêneros. Daqueles primórdios imemoriais, em que se contrapunha à tragédia (a primeira se dedicava aos homens piores que a média e esta última aos homens melhores que a média), grandes personagens da vida artística a ela se dedicaram. Aristófanes e Menandro na Grécia, Plauto e Terêncio em Roma, centenas de autores renascentistas da "Comedia dell'Arte" italiana, Lopez de Vega na Espanha, Gil Vicente em Portugal, até sua maturidade nas mãos de Shakespeare, Moliére entre outros. Todos estes filões da comédia foram para o cinema, no qual a forma mais conhecida e divulgada de comédia é o 'pastelão' nonsense.
Pornochanchada
Tendo como temas recorrentes a malandragem, o adultério, o travestismo, a homossexualidade (entendida como o papel passivo), o tráfico de drogas, a bissexualidade feminina e se valendo de uma linguagem que, do besteirol, passando pela brejeirice (1a fase) ia até a picardia (2a fase), nascia, no final da década de 1960, o cinema pré-erótico nacional, que se convencionou denominar 'Pornochanchada', herdeira direta das chanchadas dos anos 1950 e da repressão instituída pelo AI-5 (em 1968). Simultaneamente existia o cinema intelectualista/de protesto/'arte', gerado pelo Cinema Novo, produzindo filmes como "O Amuleto de Ogum" (de Nélson Pereira dos Santos - 1974), "Xica da Silva" (de Carlos Diégues - 1976) e "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (de Bruno Barreto - 1976). Rotulada como despolitizadora, o meio acadêmico em geral sustenta que este gênero foi incentivado pelo governo, tendo recebido subvenção da Embrafilme, porque desviava a atenção da sociedade dos desmandos e das perseguições políticas mostrados pelos grandes diretores do 'autêntico' cinema brasileiro. Por outro lado, a Pornochanchada também refletiu o estouro sexual que a década de 1970 presenciou, sofrendo o impacto, entre outras coisas, da pílula anticoncepcional e do movimento feminista. Grande parte dos espectadores era constituída por homens, das mais diferentes idades, raças e origens. No que concerne à classe, predominavam as classes D e C, mas não eram raros médicos, advogados ou, no outro extremo, até mendigos, irem às salas das regiões centrais das grandes capitais brasileiras (em Belo Horizonte eram exibidos nos cines Los Angeles, Marabá e Regina, entre outros). O efeito psicológico da Pornochanchada era atingir diretamente as fantasias e despertar os mecanismos projetivos dos espectadores. As mulheres extremamente maquiadas e 'liberadas' mexiam diretamente com o sonho erótico do homem médio brasileiro. Havia também um segundo processo psíquico, ou seja, levava a uma identificação direta daquele indivíduo submisso, pobre e sem perspectivas com os galãs - grande parte canastrões e carregados no gestual - valentes, audazes e sexualmente predadores. No que respeita à comédia, na Pornochanchada o homem médio ria de situações com as quais já vivera ou presenciara diretamente: um marido traído, um conquistador piegas, uma mulher atirada, um rapaz que fica impotente no momento da relação, uma aventura homossexual esporádica. Quanto a este último item, é importante um adendo: diferentemente dos filmes pornográficos de hoje em dia, onde muito raramente há alguma cena homossexual em sinopses basicamente heterossexuais, nos filmes da Pornochanchada e mesmo nos filmes eróticos da década de 80, a presença de relações sexuais entre homens e entre homens e travestis (geralmente passivos) era tão constante quanto a bissexualidade feminina, que permaneceu nos filmes heterossexuais da atualidade. Em síntese, a pornochanchada, além de mais realista em se tratando da fauna sexual do mundo concreto, não era hipócrita negando o trânsito dos homens pela sexualidade com outros homens, como se isso fosse uma coisa muito rara e específica. Portanto, conforme David Cardoso em entrevista para a revista "Playboy", "(...) o homossexual é uma figura imprescindível em toda pornochanchada". O chamado Cinema Novo se contrapunha diretamente à Pornochanchada. Aquele foi um movimento de renovação do cinema brasileiro, surgido logo após a falência da Vera Cruz, revitalizando a filmografia nacional nos seus aspectos econômicos, estéticos e políticos. As produções precursoras, "Rio 40 Graus" (de Nélson Pereira dos Santos - 1955) e "Rio Zona Norte" (idem - 1957) surgiram como crítica à atribuída falta de compromisso social da chanchada, que era até então o gênero dominante. Entretanto, somente se tornou movimento cultural organizado a partir dos primeiros filmes de Glauber Rocha: "Barravento" (1964) e "Deus e O Diabo na Terra do Sol" (1965). Este último também lançou as bases teóricas destas tendências no seu livro "Revisão Crítica do Cinema Brasileiro" (1963). Em sua fase mais produtiva (até 1969) o Cinema Novo revelou importantes diretores que fizeram obras consagradas pela crítica: Ruy Guerra ("Os Fuzis", 1964), Carlos Diégues ("A Grande Cidade", 1966), entre outros. Foi um estilo cinematográfico que se caracterizou por produzir filmes realistas, geralmente de produção modesta, com alta produção estética sem cair no exagero que caracterizara a chanchada. Isso fez com que várias produções vencessem diversos prêmios internacionais. As temáticas, quer fossem na zona rural ou urbana, buscavam abordar de maneira questionadora os problemas sociais da chamada 'realidade brasileira'. No final dos anos 60, desencadeada pela perseguição da ditadura militar, o Cinema Novo entrou em crise. Outro fato que o fez cair em relativa decadência foi a extrema industrialização da produção artística, almejando conquistar mais público (SELIGMAN, 2000).
Há algumas controvérsias para definir o grupo de cineastas que freqüentava a Boca-do-Lixo no final da década de 1960 e começo da década de 1970. Alguns os definem como cineastas marginais, no sentido literal da palavra 'margem', isto é, cineastas que atuavam na periferia do sistema (Embrafilme/Cinema Novo etc.) e tinham como temáticas principais o submundo urbano, os excluídos, os renegados pela sociedade. Não possuíam muitos recursos para filmar, logo, haviam que improvisar, tentando sanar as deficiências técnicas com criatividade. Segundo o cineasta João Callegaro, "o cinema da Boca-do-Lixo é um cinema cafajeste" (SUGIMOTO, 2002:3), que aproveitou 50 anos de cinema americano e não se perdeu nas elucubrações intelectualizantes do Cinema Novo. Os filmes da Boca-do-Lixo podiam ser feitos com negativos riscados, fotografia suja, erros de continuidade, trafegavam na precariedade. Havia certa atração pelo abjeto, pela avacalhação. A primeira vez que foi citado o termo 'Cinema da Boca' foi na revista Manchete, que definia este movimento como sendo 'cafona tropicalismo brasileiro' (SUGIMOTO, 2002). Certa feita, Carlos Reichenbach disse: "na impossibilidade de fazer o melhor, devemos fazer o pior" (SUGIMOTO, 2002:4). Estava querendo mostrar que não havia recursos para grandes produções, e quando fala do pior não se refere a obras ocas, mas a filmes transgressores que rompessem a divisão clássica entre obras de bom gosto e de mau gosto. Carlos Reichenbach nasceu em 1945 em Porto Alegre. Ao se mudar para São Paulo estudou na Escola Superior de Cinema São Luiz, onde grande parte dos outros diretores da Boca foi professor e/ou aluno (outro motivo porque eram marginalizados: grande parte não havia passado pelas cátedras da USP). Foi um dos principais diretos da 'Boca-do-Lixo'. Também era o fotógrafo de seus próprios filmes. A pecha, um tanto equivocada, de ser um 'cinema alienado', parece provir de uma intelligentsia alarmada com sua origem social: vindo de uma família pobre e tendo trabalhado anos como caminhoneiro, nada mais longe do arquétipo do intelectual de classe média do que o diretor Ozualdo Candeias, por exemplo, assim como o ex-produtor rural David Cardoso. A origem social, menos que empecilho (a pobreza, pensariam alguns, como sinônimo de ignorância), parece ser fonte de parte de sua originalidade. Candeias é um caso único no cinema brasileiro não apenas porque se ocupa em tentar registrar a margem da margem da sociedade: tantos outros diretores tentaram o mesmo, quase sempre de maneira paternalista. Há em suas imagens algo de muito particular, uma qualidade diferencial que de certa maneira só poderia emanar de um artista formado pela vida. Nesse sentido, faz um cinema empírico (e não primitivo), fundado antes sobre a experiência (e na experimentação) do que em conceitos. Em suas fitas os movimentos, as ações e personagens não apenas parecem - eles são. Em sendo assim, as pornochanchadas invadiram o mercado de modo ubíquo e se caracterizaram por serem produzidas em série, no mais literal sentido da palavra industrial. Eram levemente eróticas, sem sexo explícito, derivadas das chanchadas (porcaria em espanhol paraguaio) e indiretamente do Teatro de Revista. Apesar de terem baixíssimo custo, eram altamente lucrativas. De acordo com seus defensores, contribuíram para 'deselitizar' o cinema brasileiro, levando as classes C, D e E às salas de projeção. Pelos críticos de arte é considerada decadente e de qualidade inferior à velha chanchada musical. Apenas as tramas "Adultério à Brasileira" (1969), "Ainda Agarro Essa Vizinha" (1974) e "A Viúva Virgem" (1972) foram elogiadas pela crítica especializada daquele período. SANTOS (2003) informa que desde o dia 4 de Setembro de 1987 a Boca-do-Lixo ficou sem um de seus maiores ideólogos. Aos 59 anos, Ody Fraga morreu lá mesmo, na Boca, mais exatamente na rua do Triunfo, com os pulmões enfraquecidos pelo cigarro. Autor de mais de 50 roteiros - inclusive algumas novelas de TV, como "O Preço de Um Homem", "Bel Ami" e "Vendaval" - diretor de mais de 20 filmes, entre eles "Vidas Nuas" de 1968, que realmente deslanchou a Pornochanchada ou "Fome de Sexo", um pornô explícito. Foi grande apologista do hedonismo: "a pornografia é o sexo sem vergonha de si mesmo" disse à revista "Status" em 1982; foi um homem de excessos. Homem tão pornográfico quanto letrado, é provável que ele incomodasse um pouco mais do que devia. Dizia sempre que a USP fazia a teoria de cinema, mas que cinema mesmo, sua prática, acontecia na 'Boca'. Em relação a este diretor, ABREU (2000) confessa que: "Conheci Ody Fraga no início da década de 80. Nessa época os alunos do curso de cinema da USP querendo a prática quase inexistente na escola, procuravam aproximar-se do local onde, efetivamente, se fazia cinema: a Boca. Depois de algumas incursões com esses alunos, a rua do Triunfo perdeu o mistério. Nesse período, o cinema que lá se fazia era a 'pornochanchada', que até deu tese universitária. Na época, esse produto estava distante das concepções estéticas Uspianas, aquelas que engendravam obras-primas definitivas. Nos tempos da censura perversa, a pornochanchada, esse gênero de cinema 'mostra não-mostra', avançando centímetro a centímetro em direção do gozo vicário, era parte significativa da industria cinematográfica brasileira. Na Boca fazia-se cinema e, por isso, os alunos estavam lá. Mas como chegaram, se foram. Dessa passagem, restaram-me algumas amizades. Ody, por exemplo.
Outro importante diretor da 'boca' foi Tony Vieira (1938-1990). Ex-trapezista de circo, ex-baleiro, ex-locutor de rádio. O mineiro Mauri de Queiroz (seu nome verdadeiro) trabalhou vários anos como funcionário de uma TV de Belo Horizonte e cursou teatro universitário. Mudou-se para São Paulo onde teve sua chance como ator em um seriado onde vivia um motorista de táxi e participou de pontas em novelas. No cinema começou em filmes de seu amigo Edward Freund. Foi assistente de Mazzaropi e descobriu sua vocação para papéis de durão em aventuras rurais como "Panca De Valente" (1968), "Corisco, O Diabo Loiro" (1969) e "Uma Pistola Para Djeca" (1969). Foi também galã de Pornochanchadas, mas seus papéis de cowboy-caipira o marcaram mais. Passou a produzir, dirigir e atuar em faroestes e policiais 'vagabundos' com alto apelo erótico, violência e cenas de ação. Durante quase dez anos disputou com David Cardoso a coroa de 'o machão da Boca-do-Lixo'. Porém seus filmes eram bem mais divertidos. Criou um tipo de herói solitário e implacável, aproveitando seus dotes artísticos circenses e sua cara de malvado. Fazia par romântico com Claudete Joubert e passou a produzir para outros diretores como Wilson Rodrigues ("Liberdade Sexual", 1979; "A Dama do Sexo", 1979; "As Taras de Uma Mulher Casada", 1981, por exemplo). Ele realizou também algumas co-produções no Paraguai, tais como "O Último Cão de Guerra" (1979), em que vivia um mercenário contratado por um magnata para resgatar sua filha numa espécie de campo de concentração de traficantes paraguaios. Muitos tiros, explosões, lutas fakes e garotas nuas. Na metade dos anos 1980 Tony Vieira precisou, por questões financeiras, dedicar-se aos pornôs, que assinava com seu nome verdadeiro, Mauri de Queiroz. Em 1987 tentou retomar seus filmes de ação com "Calibre 12", que fracassou principalmente devido à má distribuição. Faleceu sem dinheiro e praticamente esquecido por seu público.
Assista abaixo a uma cena do filme "A fêmea do mar (1984) com Aldine Muller, uma importante musa da pornochanchada na década de 80.

fonte: http://www.pcrc.utopia.com.br/PORNOCHANCHADA&bl=y

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