domingo, 25 de outubro de 2009

A Operação Condor e a Europa
por Pio Penna Filho


Com o anúncio de que a justiça italiana está processando vários cidadãos sul-americanos por envolvimento na repressão a militantes de esquerda durante o período das ditaduras militares no Cone Sul, muito se tem dito sobre a chamada Operação Condor, sobretudo porque 13 brasileiros estão sendo processados pela justiça italiana. Mas o que foi, afinal, essa operação? Tratou-se de uma iniciativa chilena para criar um esquema de cooperação entre os serviços de informação das ditaduras militares dos países do Cone Sul (Brasil, Bolívia, Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile) que promovesse maior eficiência repressiva para sufocar e/ou eliminar lideranças e militantes que ainda resistiam às ditaduras. A rigor não se pode dizer que tenha ocorrido uma integração dos sistemas de repressão no Cone Sul, embora a tentativa de criação de um sistema integrado tenha existido, mas somente de maneira parcial e só bem depois do Golpe de Estado no Brasil, ocorrido em 1964. A primeira reunião internacional para sua criação ocorreu no Chile, em 1976, e dela participaram representantes do Chile, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Embora os norte-americanos não tenham oficialmente participado, acompanharam de perto as decisões tomadas na reunião e sabiam exatamente o que estava acontecendo. Muito tem sido dito no Brasil sobre a Condor e a imprensa brasileira chegou a publicar várias matérias sobre o assunto, de certa maneira vinculado o nosso país como integrante importante da Operação. Contudo, aqui defendo a tese de que essa Operação não interessava efetivamente ao governo brasileiro, à época dirigido pelo presidente Ernesto Geisel. O Brasil preferiu não se envolver tão diretamente e não se comprometer tanto com o esquema vislumbrado pelos chilenos. E por quê o regime militar brasileiro não se interessou tanto pela Condor? Ora, em 1976, os focos de resistência ao regime no Brasil já haviam sido virtualmente eliminados, restando muito pouca capacidade para a atuação dos grupos de esquerda remanescentes no país. Já no contexto regional, o fim das democracias no Uruguai, no Chile e, finalmente na Argentina, fechou o cerco ao amplo movimento de exilados entre as fronteiras desses países. Vale lembrar que o Paraguai e a Bolívia já viviam sob regimes militares. A essa altura, os brasileiros que haviam originalmente buscado refúgio na área do Cone Sul se viram impedidos de continuar na região, sobretudo pela ferocidade dos regimes chileno e argentino, que foram implacáveis com qualquer tipo de pensamento de esquerda. Era necessário e urgente buscar refúgio em outras partes, seja na Europa, América do Norte ou África, muito longe, portanto, das fronteiras nacionais e do alcance das garras do Condor. O que causa espanto é a idéia dos europeus e, nesse caso específico, dos italianos, de se acharem no direito de julgar crimes cometidos num contexto histórico e regional totalmente alheio a eles. Os países europeus foram os países mais criminosos do mundo ao longo dos séculos XIX e XX e muito pouco foi feito em termos de justiça para julgar, condenar e punir os seus crimes, como se verá. A Operação Condor continua em evidência nos principais jornais do país e provavelmente continuará por um bom tempo, à medida que mais fatos forem surgindo. É importante frisar que a participação do Brasil nessa Operação foi limitada e que não interessava tanto ao regime militar brasileiro cooperar nesse tipo de assunto com outros regimes do Cone Sul. Pelo menos não de uma forma institucional. E também é bom lembrar que havia interesses muito divergentes e rivalidades entre esses regimes. Pelo simples fato de serem regimes militares não podemos colocar todos num mesmo patamar. Mas há um aspecto que deve ser questionado e que afinal foi o que colocou a Operação Condor em evidência novamente. Refiro-me diretamente ao fato dos europeus se acharem no direito de exercer a “justiça” em qualquer parte do mundo, como se fossem os guardiões, os paladinos da moralidade planetária. Ora, qualquer estudante ou observador da História mundial há de verificar que a maior parte do sofrimento humano ocorrido pelo menos nos dois últimos séculos provém exatamente da “civilizada” Europa, isso para não voltarmos mais no tempo. Vamos citar apenas alguns poucos exemplos: a escravidão negra foi instituição tipicamente européia (os europeus foram os responsáveis diretos pela invenção da escravidão baseada na cor da pele, uma novidade em termos históricos). Mas a escravidão foi pouco. Junto ocorreu praticamente o extermínio e a desenfreada exploração dos povos originários das Américas e depois veio o sistema colonial com toda a sua brutalidade e bestialidade, tanto no continente asiático quanto no africano. Para irmos um pouco mais além, o século XX assistiu a dois conflitos globais originários de idéias e práticas políticas genuinamente européias. E, para quem não sabe, a Europa pariu o fascismo e sua variante nazista, infelizmente ainda hoje presentes em muitos países do mundo, sobretudo na própria moderna e civilizada Europa. Mas vamos avançar ainda mais, com mais exemplos. A Espanha, sob o governo do generalíssimo Franco, protagonizou um brutal regime de exceção que não ousou um minuto sequer em pactuar com a Alemanha nazista. Portugal, com a ditadura de Salazar, fez o inimaginável com a oposição interna e, principalmente, com as “pessoas” (é bom lembrar que até bem pouco tempo atrás os europeus não consideravam os negros exatamente como pessoas) que lutavam contra o ultracolonialismo na África. A Inglaterra, por sua vez, na década de 1970 (portanto, concomitante com os regimes militares latino-americanos) usou seus pára-quedistas para executar manifestantes irlandeses contrários à dominação britânica da Irlanda do Norte (episódio conhecido como “Domingo Sangrento”). E o que dizer do racismo explícito dos povos europeus contra negros, latinos e asiáticos? Acaso não constituem crimes contra a humanidade, de acordo com determinação das Nações Unidas? E ninguém fala disso. Mais um exemplo apenas: o regime “democrático” da “civilizada” e “ilustrada” França ajudou no genocídio em Ruanda (ocorrido outro dia, em 1994) e pelo que consta nenhum sábio juiz europeu abriu qualquer processo contra os bravos militares ou ilustres políticos franceses! Pois esses são os senhores do mundo que se acham no direito de pedir a extradição de latino-americanos! O que se passou aqui deve ser acertado aqui. Os crimes cometidos durante as ditaduras latino-americanas são responsabilidade nossa, e não dos europeus. Não somos idiotas e nem aceitamos ser tratados como incapazes. Os europeus deveriam cuidar da sua casa e da sua História, afinal há um verdadeiro acumulado histórico de violência e desrespeito aos mais elementares direitos humanos que nunca foi devidamente esclarecido.




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